31/10/2016 19h09 - Atualizado em 31/10/2016 19h21
Os jovens russos que estão treinando para uma guerra nuclear
com o Ocidente
Na Rússia, muitos acreditam que é preciso se preparar para
um conflito - mas também há quem considere tudo isso um exagero.
Gabriel GatehouseBBC Newsnight
Em meio a uma floresta às margens de Moscou, dezenas de
estudantes usando uniforme de combate estão correndo, atirando entre si com
espingardas de pressão de ar.
A viagem de final de semana para jogar paintball, organizada
por um partido de oposição ao governo, parece inofensiva. Mas na Rússia nem tudo é o que
parece.
"Nós oferecemos um grande leque de temas
militares", diz Stepan Zotov, ativista do partido responsável pelo evento.
"Há luta de facas, arremesso de facas. Também
trabalhamos com munição real, atirando em alvos ou às vezes em acampamentos
militares."
O partido de Zotov, Rodina ("Pátria Mãe" em
russo), faz parte do que é conhecido como "oposição leal", o que
significa que apoia o Kremlin.
E suas atividades fazem parte de um programa "de
educação militar e patriótica" apoiado pelo governo - e voltado para
estudantes.
Conflito iminente?
A TV russa recentemente mostrou imagens de um treinamento de
defesa (Foto: BBC/NTV)
Ao assistir à televisão russa, a impressão é a de que o país
está prestes a entrar em confronto militar com o Ocidente.
Recentemente, um programa de notícias estatal veiculou que a
população deveria localizar o abrigo nuclear mais próximo de suas casas antes que
fosse tarde demais - a Rússia recentemente realizou exercícios em escala
nacional para se preparar para um ataque do tipo.
Zotov leva a possibilidade muito a sério.
"Estamos nos preparando para um confronto com o
Ocidente. Mas a maior parte desse confronto acontece no nível cultural,
informacional e de valores. A civilização russa é uma cultura de heróis e
guerreiros", diz.
Para ele, o colapso da União Soviética foi uma tragédia.
"Nosso grande país foi dissolvido sem guerra armada
porque começamos a amar um povo e uma cultura diferentes, não a nossa."
Ucrânia
Enquanto um conflito militar aberto não vem, o jovem diz que há outros
confrontos indiretos entre a Rússia e seus rivais ocidentais. Por exemplo, no
leste da Ucrânia, onde ele diz ter lutado como voluntário ao lado de forças
separatistas.
"Eu, meus camaradas e alguns dos meus cadetes
participamos. É um conflito entre a Rússia e o Ocidente", diz.
Kiev, que nos últimos anos andou ensaiando laços mais
próximos com a União Europeia, acusa Moscou de retaliar essa aproximação
fomentando o separatismo na sua área de fronteira, onde culturalmente a
influência é russa.
O ápice dessa tensão ocorreu em 2014, quando a Rússia anexou
a península da Crimeia, até então sob controle ucraniano.
Porém, nenhum dos estudantes entrevistados pela BBC parece
interessado em se voluntariar para lutar na Ucrânia. Eles são adolescentes ou
jovens de 20 e poucos anos e nasceram após o período soviético. O discuso da
televisão não parece convencê-los.
"Você não devia assistir à TV na Rússia", diz uma
jovem.
"A televisão manipula as coisas. É uma guerra de informação. Você
não devia prestar atenção nisso. Eles deixam as pessoas ansiosas sem
motivo."
Questionados sobre o que o conceito de Ocidente significa,
as respostas são bem diferentes das ideias de Zotov. "Capitalismo",
diz um. "Oportunidade", afirma outro.
"Além disso, a cultura é interessante. É uma cultura
diferente. Talvez algum dia exista uma cooperação, porque todos vivemos no
mesmo planeta e a guerra não faz sentido", disse a adolescente.
A tensão entre a Rússia de Putin e os EUA de Obama cresceu
nas últimas semanas (Foto: Alexei Druzhinin/AFP)
O que se vê na TV russa hoje ou é sancionado ou simpático ao
Kremlin.
Os programas de notícias apresentam uma série de histórias
sobre guerras e crises no exterior, falando também das incoerências
internacionais. O governo ucraniano foi acusado de crucificar bebês e a BBC, de
realizar um ataque com armas químicas na Síria.
Para apoiar o oportunismo político, foi criada uma abordagem
filosófica. Um de seus arquitetos é Alexander Dugin, um pensador que está sob
sanção dos Estados Unidos por seu suposto envolvimento na anexação da Crimeia à
Rússia e na guerra no leste da Ucrânia.
Rússia única
"A verdade é uma questão de fé", disse Dugin em seu canal de
televisão pró-Kremlin.
"A pós-modernidade mostra que a tão chamada verdade é
uma questão de fé. Então nós acreditamos no que fazemos e no que dizemos. E
esta é a única maneira de definir a verdade. Temos nossa verdade russa
especial, que você deve aceitar."
A filosofia de Dugin é conhecida como Eurasianismo. Segundo
ela, a Rússia Ortodoxa não faz parte nem do Ocidente nem do Oriente, mas de uma
civilização isolada e única que batalha pelo lugar que merece entre as
potências mundiais.
A obra dele tem se tornado cada vez mais influente entre a
elite política e militar da Rússia.
"Se os Estados Unidos não querem iniciar uma guerra,
você deveria reconhecer que eles não são mais o único líder. E com a situação
na Síria e na Ucrânia, a Rússia diz 'não, você não é mais o chefe'. Essa é a
questão de quem manda no mundo. Apenas a guerra realmente poderia
decidir."
Alexander Dugin diz que a verdade é uma questão de fé
(Foto:
BBC)
Atualmente, as relações entre Rússia e Estados Unidos estão
no momento mais delicado desde o colapso da URSS e o fim da chamada Guerra
Fria, em 1991.
A constante tensão entre os dois países foi intensificada
nas últimas semanas após a ofensiva conjunta das forças sírias e russas na cidade
de Aleppo, na Síria, contra os rebeldes.
O presidente dos EUA, Barack Obama, condenou a ofensiva e
ameaçou interromper negociações a respeito da guerra, enquanto o presidente
russo Vladimir
Putin acusou os americanos de deteriorarem as relações do Ocidente com
a Rússia propositalmente.
Além disso, no dia 20 de setembro um comboio da ONU foi
atingido e os EUA atribuíram o ataque à Rússia, que responsabilizou um grupo
terrorista e acusou os Estados Unidos de acusá-la injustamente.
Paralelamente, o governo americano acusou a Rússia de usar
hackers para desestabilizar as eleições presidenciais no país depois que
e-mails de funcionários do Partido Democrata foram vazados.
No entanto, segundo o ex-agente da CIA Paul Pillar, trata-se
de apenas de uma competição por influência.
"Não estamos vendo o tipo de competição ideológica que
caracterizou a Guerra Fria e felizmente já não temos outra corrida nuclear
armamentista", disse à BBC.
Filosofia russa
As ideias bélicas de Dugin não estão voltadas somente ao Ocidente. Há uma
mensagem de consumo interno também, que é: não existem valores liberais
universais, não há uma contradição inerente em uma democracia e que não permita
a discordância.
O político opositor Boris Nemtsov foi assassinado no ano
passado
(Foto: BBC)
Na sombra das paredes do Kremlin, o cada vez mais enxuto
grupo de ativistas russos mantém viva a memória de Boris Nemtsov, deixando
flores no lugar onde o político de oposição foi assassinado no ano passado. É
um trabalho frio e solitário.
"Eu ainda acredito que aquela verdade existe", diz
Mikhail Shneider, um ex-dissidente soviético e camarada de Nemtsov.
"É um fato que eles mataram Boris Nemtsov bem aqui, a
10 metros de onde estamos. É um fato que Putin está no Kremlin. É um fato que a
TV de Putin mente."
A maioria dos russos não acredita de verdade que uma guerra
nuclear com o Ocidente está prestes a acontecer. Talvez nem seus políticos
acreditem nisso. Eles provavelmente não acreditam de verdade no Estado
Orwelliano pós-moderno.
Mas quanto mais uma mentira é repetida, maior é o risco de
ela se tornar algum tipo de realidade.
FONTE: http://g1.globo.com/
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