O jornalista e escritor Paulo Moreira Leite é diretor do 247
em Brasília
30 de Dezembro de 2016
Sete meses depois do afastamento de Dilma Rousseff, centenas
de milhares de brasileiros que foram às ruas apoiar o pedido de
impeachment têm todo direito de se mostrar indignados com as descobertas
recentes sobre Michel Temer e seus auxiliares diretos.
Minha opinião é que essas pessoas deveriam pelo menos
admitir que vestiram nariz de palhaço quando resolveram ignorar
denúncias frequentes que mostravam que o país assistia a um espetáculo de
caráter seletivo, onde objetivos de natureza política tinham
prioridade sobre fatos e provas de caráter criminal.
A leitura do volume 2 dos Diários da Presidência
mostra que Fernando Henrique Cardoso, tinha perfeita noção de que se
preparava um embuste para iludir o país com discursos de falso moralismo mas
preferiu emprestar a biografia para dar respeitabilidade a um circo político
que Joaquim Barbosa classificou como "encenação" do Congresso.
Os registros das 868 páginas mostram Fernando Henrique
preferiu o silêncio quando poderia ter falado -- e muito. Deixou lembranças e
observações para a história, aos estudiosos do futuro mas não agiu de
acordo com o que conhecera e sabia, O volume 2 veio a público em maio, quando a
sorte de Dilma recebia o tratamento final na Câmara de Eduardo Cunha,
Jair Bolsonaro e as lideranças do PSDB, produzindo uma cena lamentável de
barbárie política.
Compreende-se pela leitura do Diário que FHC conhecera
de perto a liderança do PMDB que, em torno de Michel Temer, Geddel Lima e
Eliseu Padilha, preparava-se para o assalto ao poder.
Em 1997, dezenove anos antes, Fernando Henrique
encontrava-se na segunda metade de seu primeiro mandato como presidente da
República, quando teve a oportunidade de redigir suas impressões opiniões sobre
o triunvirato Temer-Geddel-Padilha no volume 2 dos Diários da Presidência.
Verdade que em 1997 ele não podia imaginar que estava
produzindo um relato precioso para se examinar o comportamento de cada um
desses personagens, quase vinte anos mais tarde. Até por isso, o texto tem um
caráter especialmente valioso, já que Fernando Henrique Cardoso teve
uma experiência bastante concreta, digamos assim.
De olho na joia da coroa da Esplanada, o Ministério dos
Transportes, tradicional ponto de negócios com grandes empreiteiras -- as
mesmas que em nossa época fariam delações premiadas na Lava Jato -- o trio
queria emplacar Padilha a frente da pasta mais disputada de Brasília. Fernando
Henrique resistia. Deixou palavras que mostram uma certa bravura, o esforço de
quem precisava do apoio do PMDB mas fazia questão de registrar sua preocupação
com princípios e a disposição de resistir a pressões indevidas.
Está lá, na página 167, uma descrição crua da
situação: "o PMDB entrou no nível da chantagem," escreve FHC,
referindo-se ao esforço de Geddel para trocar votos para garantir a provação do
Fundo de Estabilização Fiscal, peça-chave do plano Real, "pela nomeação do
ministro".
Já o atual presidente da República, Michel
Temer, diz FHC, com uma ponta de ambiguidade, encontrava-se
"um pouco atordoado, mas também participando." Conforme o
presidente, "parece que está havendo aí um lobby muito forte (a favor de
Padilha). Isso já torna a nomeação mais perigosa."
Três páginas adiante, na noite de 29 de abril
de 1997, a desconfiança fica escancarada. O presidente senta-se para relatar
uma conversa com o tesoureiro Sérgio Motta, ministro das Comunicações e
operador político do governo. Para FHC, a pressão é tão grande que "está
cheirando mal."
Vamos ler o trecho, na íntegra, com
riqueza de detalhes: "no domingo, encontro o Sérgio Motta, ele muito
nervoso, realmente nervoso. Foi a uma reunião na casa do Michel Temer, numa
festa, e lá o Geddel, o líder do PMDB, dizia que se o Sérgio quisesse aprovar o
Fundo de Estabilização Fiscal, tinha que nomear logo o ministro, tem que o ser
o Eliseu Padilha, uma coisa explícita. Eu já tinha decidido que não vou nomear
Eliseu Padilha nenhum, porque esta pressão está cheirando mal." Em
seguida, Fernando Henrique esclarece: "até tenho simpatia pelo Eliseu mas
do jeito que as coisas estão se colocando, isso está mal."
Por vários semanas, Fernando Henrique deixou
registrada sua má vontade com o ministeriável, que iria se tornar
ministro-chefe da Casa Civil e homem forte do governo Temer. Só se referia ao
gaúcho Padilha como "aquele rapaz do Rio Grande do Sul."
(Também parece divertir-se chamado Aécio Neves pelo diminutivo Aecinho). Quem
tivesse lido o diário, na época, teria certeza de que Padilha jamais se
tornaria ministro de FHC.
Três semanas depois, ocorreu aquilo que costuma
se passar no mundo político, com tantos personagens, de todos os partidos,
mesmo aqueles que não escrevem Diários.
Em 22 maio de 1997, menos de um
mês depois de ter escrito que não iria "nomear Eliseu Padilha nenhum, essa
pressão está cheirando mal," Fernando Henrique lhe deu posse no
ministério, permitindo que ali ficasse por até novembro de 2001, ou seja, por
quatro anos seguidos.
A passagem de Padilha pela Esplanada foi marcado por
rumores e denúncias, em grande parte vocalizadas por Pedro Simon, voz histórica
do PMDB gaúcho.
A opinião corrente era que aquele ministério estava mesmo
"cheirando mal", embora nada tivesse sido demonstrado contra o ministro.
Em qualquer caso, é bom admitir, a oposição não tinha força política para isso.
Sequer foi capaz de convocar o ministro para dar explicações no Congresso.
"O Geddel se mobilizou para comandar a tropa de choque que protegeu o
Padilha, " lembra um parlamentar presente, bastante ativo, na época,
referindo-se ao futuro ministro cuja permanência no Planalto tornou-se
insustentável quando se revelou seu empenho para salvar um apartamento
milionário em Salvador num investimento condenado pelo patrimônio histórico.
Duas décadas mais tarde, em julho de 2015, quando
especulou-se sobre a possibilidade de um encontro entre FHC e Dilma Rousseff,
pois eram claros os sinais de que a democracia encontrava-se em situação de
risco, o ex-presidente usou sua página no Facebook para recusar qualquer
contato com uma presidente eleita por 53,5 milhões de votos, que no dia de seus
80 anos redigira uma carta-homenagem de reconhecida generosidade, muito além de
todo protocolo e toda conveniência política.
"O momento não é para a busca de aproximação com
o governo mas sim com o povo", escreveu Fernando Henrique. "Qualquer
conversa não pública com o governo pareceria conchavo na tentativa de salvar o
que não deve ser salvo."
Na verdade, o que não deveria ser salva era uma articulação
que produziu a mais grave ruptura institucional desde abril de 1964, abrindo um
processo de destruição de direitos e permanente instabilidade -- cuja
origem se encontra na quebra da soberania popular.
Repetindo 1997, quando
acabou cedendo a uma operação que estava "cheirando mal", em 2016
ficou em silêncio e fez o que se sabia que não deveria ser feito.
Fonte: http://www.brasil247.com/
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