MARIA LUISA
MENDONÇA
Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo
(USP) e coordenadora da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos
O
impeachment de Dilma se transformou num teatro do absurdo
20 de Julho de 2016
"Quando um processo que nem ao menos é justo é
conduzido por interesses inconfessáveis mas que todo mundo mais ou menos já
sabe, então se cria uma espécie de capa de cinismo que encobre os processos
sociais legítimos da política".
Essa observação, da psicanalista Maria Rita Kehl, resume o
contexto no qual presenciamos o impeachment da presidente Dilma Rousseff, que
lembra também o livro "Ensaio sobre a cegueira" de José Saramago e
sua metáfora para descrever o sofrimento daqueles que sāo capazes de enxergar
quando a sociedade mergulha em um processo de autodestruição.
Desde o início estava claro que a acusação declarada contra
Dilma, que seria baseada nas "pedaladas fiscais", servia somente como
uma "capa de cinismo" para barrar as investigações de corrupção e
implantar uma agenda conservadora que tem sido rejeitada pela maioria da
sociedade nas eleições presidenciais desde 2002. Estava claro, portanto, que se
tratava de um golpe parlamentar contra uma presidente eleita e reeleita.
Atualmente ganha força entre os golpistas a estratégia de
criar a impressão de que o impeachment seria um fato consumado, não importa o
que aconteça. Esse teatro já conta com tantas cenas patéticas que pode ser
descrito como surreal — quando a representação dos fatos apresenta contornos
absurdos.
Começou com a votação na Câmara dos Deputados, quando uma
maioria de parlamentares que é investigada por corrupção aprovou o impeachment
em nome de Deus e da família.
No Senado, novamente, a estratégia dos golpistas foi desviar
a atenção daquilo que deveria ser a base de suas acusações — as tais
"pedaladas".
Assim, garantem que grande parte da sociedade nem mesmo
entenda a acusação contra Dilma.
Basicamente, o que se caracterizou como "pedalada
fiscal" representa um tipo de mecanismo financeiro utilizado não somente
no Brasil, mas faz parte da estratégia de financiamento das estruturas do
Estado em todos os países, que emitem dívida para cobrir o orçamento público.
No caso específico da acusação contra Dilma, como mostrou o
Ministério Público Federal, as operações foram feitas para subsidiar
empréstimos a taxas de juros menores do que aquelas estabelecidas como taxas de
referência no mercado financeiro.
Esse fato seria suficiente para mostrar que o debate
principal não deveria ocorrer na esfera jurídica, já que o caso analisado tem
relação com opções políticas e econômicas, que devem ser avaliadas
criticamente, mas não constituem base suficiente para justificar o impeachment.
Outro elemento ausente nesse processo é o entendimento sobre
a chamada lei de "responsabilidade fiscal", muitas vezes utilizada
para atropelar a "responsabilidade social", ou seja, para violar
direitos básicos de bem-estar social.
Obviamente, esse tipo de manipulação não seria possível sem
o apoio da mídia corporativa, que sequer pretende demonstrar minimamente alguma
"imparcialidade".
A boa notícia é que essa chamada "grande" mídia
tem perdido espaço para meios alternativos, diversos, criativos e que trazem
informações confiáveis.
As cenas patéticas continuaram, com a queda de três ministros
de Temer e as gravações que revelaram a conspiração desses políticos contra
Dilma.
Mas o grande ato tragicômico foi reservado para o ator
principal, Eduardo Cunha, que permanece controlando seus marionetes nos
bastidores.
Tudo isso sob a "capa" de silêncio do Supremo
Tribunal Federal.
Recentemente, a constatação de maior relevância para o
processo de impeachment foi o pedido de arquivamento pelo Ministério Público
Federal da investigação criminal contra Dilma sobre as "pedaladas
fiscais".
Porém, novamente, um fato central para o processo foi
minimizado pela mídia e por políticos interessados no golpe.
A cada dia fica mais evidente que a sentença contra Dilma já
estava definida antes mesmo do início desse teatro chamado impeachment.
Voltando à observação de Maria Rita Kehl, essa é a
"capa de cinismo que encobre os processos sociais legítimos da
política", em outras palavras, que pode alimentar traços de fascismo no
Brasil.
A construção dessa hegemonia conservadora facilita a
eliminação de direitos fundamentais nas relações de trabalho, educação, saúde,
com impactos negativos de longo prazo.
Não precisamos ir muito longe para compreender as
conseqüências da quebra das regras fundamentais em uma democracia.
A memória do golpe de 1964 que instalou uma ditadura no
Brasil por mais de duas décadas ainda deixa marcas profundas na sociedade.
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