Volta da escravidão: Governo quer trocar salário de
trabalhador rural por casa e alimentação
02/05/2917
Votada a reforma trabalhista, a Câmara dos Deputados se
debruçará agora, com apoio do governo, sobre mudanças nas leis do trabalho
específicas para os trabalhadores rurais.
A ideia é adotar o mesmo espírito do
projeto aprovado na madrugada de quinta-feira: não tratar o trabalhador como um
“coitadinho” e restringir o poder da Justiça do Trabalho e Ministério Público
do Trabalho sobre estabelecer novas normas ou interpretar as existentes.
“Existe preconceito muito grande da Justiça do Trabalho com
o trabalhador rural”, diz o presidente da bancada ruralista, deputado Nilson
Leitão (PSDB-MT), autor do projeto. “As leis brasileiras e, principalmente, os
regulamentos expedidos por órgãos como o Ministério do Trabalho são elaborados
com fundamento nos conhecimentos adquiridos no meio urbano, desprezando usos,
costumes e a cultura do campo”, afirma.
A proposta permite que as empresas não paguem mais seus
funcionários com salário, mas mediante “remuneração de qualquer espécie” – o
que pode ser simplesmente fornecer moradia e alimentação-, aumentem para até 12
horas a jornada diária por “motivos de força maior”, substituam o repouso
semanal dos funcionários por um período contínuo, com até 18 dias de trabalho
seguidos, e a venda integral das férias dos empregados que moram no local de
trabalho.
“É uma proposta mais perversa que a própria reforma
trabalhista”, critica o coordenador da bancada rural do PT, o deputado Beto
Faro (PA). Entidades de defesa dos trabalhadores rurais, Contag e Contar
afirmam, em nota técnica que será distribuída aos parlamentares, que o projeto
“fere de morte normas constitucionais e infraconstitucionais relativas à saúde
e segurança”.
As modificações ficaram de fora do parecer do deputado
Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da reforma trabalhista, por um acordo da
bancada ruralista com o governo – são 192 itens que deixariam o projeto muito
maior e poderiam aumentar as resistências.
“Alguns pontos da reforma aprovada
já ajudam as empresas rurais, como o fim das horas in itinere, redução do
tempo de almoço por acordo coletivo, as novas formas de contrato. Mas é claro
que, pela especificidade do campo, merece uma legislação a parte”, diz Marinho.
Segundo Leitão, a articulação política do governo e a Casa
Civil foram consultadas e apoiaram o acordo. O projeto será debatido numa
comissão especial da Câmara que deve ser instalada nas próximas semanas –
apenas a oposição não indicou os integrantes. Na justificativa do projeto, o
tucano defende que as alterações vão modernizar a relação no campo, com aumento
dos lucros, redução de custos e geração de novos postos de trabalho.
O projeto, protocolado em novembro, reproduz parte da
reforma aprovada pela Câmara. Os acordos coletivos entre sindicatos e empresas
poderão prevalecer sobre a legislação, acabará o pagamento de horas in itinere
(de deslocamento em veículos da empresa, onde não há transporte público),
institui a jornada intermitente (em que o funcionário pode trabalhar em
horários específicos do dia, quando houver demanda, sem uma jornada contínua).
Um dos pontos que causam maior preocupação aos sindicatos
rurais é a possibilidade de que o trabalhador não seja mais pago apenas com
salário. No campo, muitas vezes a remuneração ocorre com parte da produção ou
cessão de pedaços de terra para que o empregado possa produzir. “Há um imenso
risco de regularizar esta modalidade ou outras, como em troca de moradia e
alimentação”, dizem Contag e Contar.
Há regras no texto para limitar essa possibilidade, como
dizer que a cessão de moradia para o empregado não integra o salário e que será
descontado no máximo 20% do salário mínimo por moradia e 25% pela alimentação.
Mas, para as entidades, a mudança sobre a remuneração “de qualquer espécie”
abre brecha para este tipo de pagamento.
O projeto também revoga a norma do Ministério do Trabalho
sobre as regras de segurança e saúde no campo (NR-31) e define, na opinião dos
contrários à proposta, regras genéricas e que retrocedem à atual
regulamentação. Acabam, por exemplo, com a obrigação de que a empresa mantenha
equipamentos de primeiros socorros no local e com o exame demissional caso o
funcionário tenha realizado exame médico ocupacional ou perícia no INSS nos
últimos 90 dias.
Também deixa exclusivamente com o Ministério da Agricultura
a fixação de regras sobre a manipulação de agrotóxicos, excluindo os
Ministérios da Saúde e do Trabalho, acaba com a obrigação de descontaminar os
equipamentos de segurança ao fim de cada jornada e permite que maiores de 60
anos utilizem os chamados defensivos agrícolas.
O texto ainda autoriza que, sempre que a jornada normal for
interrompida por “motivo de força maior ou resultante de causas acidentais” –
com uma máquina quebrada-, o trabalhador poderá ser obrigado a trabalhar até
quatro horas a mais para “recuperação do tempo perdido”. Essas horas extras
serão devolvidas em até um ano como folga ou pagamento.
A jornada também poderá ser ampliada para até 12 horas
diárias, mesmo sem interrupção, por “motivo de força maior, causas acidentais
ou ainda para atender a realização ou conclusão de serviços inadiáveis”.
O
trabalho aos domingos e feriados, hoje limitado por portaria do Ministério do
Trabalho a laudos técnicos que indiquem a necessidade de execução de serviços
nesses dias, também estará liberado.
Os autores do texto argumentam que o trabalho no campo tem
suas peculiaridades e que situações alheias à vontade da empresa, como mudanças
bruscas no tempo, podem afetar a colheita e é preciso haver maleabilidade. Já
para os críticos, está se abrindo brecha para ampliar forçadamente a jornada e
repassar o risco do negócio para os empregados.
É autorizado ainda que o repouso semanal remunerado seja
substituído por um período de descanso contínuo, para “melhor convívio familiar
e social”, caso o empregado more em local distinto do emprego. Os dias seguidos
de trabalho poderão chegar a até 18. Já os que morarem no local de trabalho
poderão vender integralmente suas férias, bastando previsão no acordo coletivo
ou individual.
A empresa também só terá que disponibilizar infraestrutura
adequada nas chamadas frentes de trabalho (áreas de trabalho móveis e
temporárias), como banheiro e espaço para alimentação, quando atuarem mais de
20 empregados. Segundo ruralistas, hoje a Justiça trabalhista chega a exigir
esse suporte até quando há apenas um funcionário deslocado, encarecendo os custos.
Os chamados contratos de safra serão ampliados para outras
possibilidades, abarcando inclusive atividades de pecuária, e poderão ser
firmados de forma sucessiva. Para a Contag, é uma forma de mascarar como
contratos determinados um vínculo indeterminado – e fugir, assim, dos custos de
demissão, como a multa de FGTS e aviso prévio.
O coordenador da comissão de Relações do Trabalho da
Confederação Nacional da Agropecuária (CNA), Cristiano Zaranza, diz que o
projeto acaba com a “indenização duplicada”, paga na demissão dos que trabalham
no período de determinada safra agrícola.
Quando um safrista é demitido, além
da multa de 40% do FGTS, também recebe outra indenização prevista antes da
Constituição de 1988 e que é proporcional ao tempo de serviço.
O acerto da bancada ruralista é que o projeto trate também
da futura contribuição previdenciária dos agricultores familiares e pescadores
artesanais, que será de até 5% do salário mínimo (cerca de R$ 50 mensais), de
acordo com o parecer do deputado Arthur Maia (PPS-BA) sobre a reforma da
Previdência.
O texto tem até dois anos para ser aprovado, do contrário valerá a
versão que está na proposta do governo.
Fonte: Valor Econômico
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