Síria: Presidente Vladimir Putin (entrevista)
23.10.2016
Presidente da Rússia Vladimir
Putin: Como é que chegaram aqui? Nessa cidadezinha
provinciana... Atualmente, encontram-se franceses onde quer que se esteja, em
todas as cidades da Rússia. É muito bom. Muito nos agrada vê-los por
aqui.
Pergunta (retraduzida): Sr. Presidente, pode explicar-nos por que o senhor
não irá a Paris?
Vladimir Putin: Muito simples. Havíamos planejado participar de uma
cerimônia oficial de inauguração do recém construído centro religioso-cultural
russo em Paris. Mas, pelo modo como estão as coisas, esse não é o melhor
momento para reuniões oficiais, dada a falta de entendimento mútuo, para dizer
o mínimo, no que tange aos eventos na Síria, particularmente a situação em
Aleppo. Mas estamos abertos, claro, a qualquer consulta e diálogo sobre esse
assunto.
Pergunta: Pois os franceses esperavam exatamente... poder usar aquela
oportunidade, para discutir a situação na Síria, mas, por causa da mesma
situação, o senhor está desistindo da visita.
Vladimir Putin: Sabe, não é que estejamos desistindo da visita, apenas que
nos disseram que a principal motivação da visita, como já disse, a inauguração
do centro religioso-cultural, não é boa ideia, no atual momento. Mas se a
principal razão de minha visita a Paris não é adequada, provavelmente
encontraremos outra oportunidade para nos reunir e discutir a Síria. Não
demarcamos nenhuma limitação ao assunto e, sim, estamos abertos ao
diálogo.
Apenas que nos fizeram ver que o momento atual não é a situação mais
conveniente para as reuniões que foram planejadas. Só isso. Não desistimos de
visitar a França.
Pergunta: Muitos representantes ocidentais, incluindo [secretário de
Estado dos EUA John] Kerry, [ministro de Relações Exteriores da França
Jean-Marc] Ayrault e até [presidente da França] François Hollande usaram
retórica dura contra a Rússia, por causa dos ataques aéreos contra Aleppo, que
atingiram alvos civis e até hospitais. Alguns usaram a expressão "crimes
de guerra". Qual sua resposta?
Vladimir Putin: Para mim, é só retórica política sem grande significado, e
que não considera a verdadeira situação na Síria. Permita-me explicar melhor.
Creio profundamente que parte da responsabilidade pelo que está acontecendo na
região em geral e na Síria em particular cabe sobretudo aos nossos parceiros
ocidentais, principalmente aos EUA e seus aliados, inclusive os principais
países europeus.
Você lembra como todos correram a apoiar a 'Primavera Árabe'? Onde está todo
aquele otimismo? Como terminou toda aquela boa vontade? Lembram-se do que foram
Líbia e Iraque, antes de esses países e suas instituições serem destruídas,
como estados, por forças dos nossos parceiros ocidentais?
Certamente, aí não se tem exemplos de democracias, como hoje se compreende a
palavra, e provavelmente lá era preciso e era possível influenciar a
organização daquelas sociedades, a organização do estado, a própria natureza
dos regimes que lá havia. Mas seja como for, em todos os casos que se
considerem, não havia naqueles estados quaisquer sinais de terrorismo. Aqueles
estados não eram ameaça a Paris, à Côte d'Azur, não ameaçavam a Bélgica, nem a
Rússia, nem os EUA.
Hoje, esses mesmos estados são fonte de ameaças terroristas. Nosso objetivo é
impedir que aconteça exatamente a mesma coisa, agora na Síria.
Sei da questão que vocês têm com os refugiados. Parece que queria perguntar
sobre eles? Se não, permita-me tocar nesse assunto, mesmo assim. Recordemos que
o problema dos refugiados começou muito antes de a Rússia começar a trabalhar
para normalizar e estabilizar a situação na Síria. A saída em massa de pessoas,
que deixam amplas áreas do Oriente Médio e da África e do Afeganistão começou
muito antes de nós iniciarmos nossa operação ativa na Síria.
Não há justificativa para que a Rússia seja acusada de responsabilidade no
problema dos refugiados. Nosso objetivo sempre foi, ao contrário, criar
condições para que as pessoas pudessem voltar à própria terra e à própria
casa.
Quanto à situação humanitária em Aleppo, teremos todos esquecido como as forças
dos EUA atacaram, ataque aéreo, no Afeganistão, que atingiu um hospital e matou
médicos e pessoal de socorro dos Médicos sem Fronteiras, dentre outros? No
Afeganistão foram mortas mais de 100 pessoas só numa festa de casamento que foi
atacada. E veja o que acaba de acontecer no Iêmen, onde um único ataque matou
170 pessoas e feriu 500, que participavam das cerimônias de um funeral.
A triste realidade é que, onde aconteçam operações militares, muitos inocentes
sofrem e morrem. Mas não podemos permitir que terroristas escondam-se entre
civis, usados como escudo humano. Não podemos permitir que chantageiem todo o
mundo, quando tomam reféns, matam, degolam pessoas.
Se queremos vencer a luta contra o terrorismo, temos de combater contra os
terroristas, em vez de deixar que assumam o comando, em vez de ceder e recuar.
Pergunta: Sr. presidente, o problema é que os franceses não compreendem
por que o senhor está bombardeando essas pessoas que o senhor chama de
terroristas. Afinal, foi o ISIS que nos atacou, mas não há forças
do ISIS em Aleppo. Aí está o que os franceses não compreendem.
Vladimir Putin: Posso explicar. Há outro grupo terrorista, a Frente
al-Nusra, que controla a situação em Aleppo. Esse grupo sempre foi considerado
uma ala da Al Qaeda e está listado como organização terrorista pela ONU.
O que nos parece particularmente deprimente e difícil de compreender é que
nossos parceiros, especialmente os norte-americanos, estão sempre achando meios
para tentar excluir esse grupo da lista de organizações terroristas. Vou
dizer-lhe por quê. Parece-nos que nossos parceiros repetem sempre e sempre o
mesmo erro. Querem usar o potencial de combate de organizações terroristas e de
grupos radicais para perseguir os seus próprios objetivos políticos; nesse
caso, o que querem é combater contra o presidente Assad e seu governo. Querem
usar os terroristas e radicais; não querem simplesmente conter os rebeldes e
impor-lhes regras e leis civilizadas.
Conseguimos chegar a repetidos acordos com os norte-americanos, pelos qual eles
teriam de separar as forças da Frente al-Nusra e seus terroristas, de um lado;
e, de outro lado, as chamadas forças 'saudáveis' da oposição, inclusive em
Aleppo. Concordaram que seria necessário proceder desse modo. Ainda mais,
acertamos que haveria prazos concretos. Mas eles nada fizeram do que se comprometeram
a fazer, um mês depois do outro.
Recentemente, alcançamos um acordo de cessar-fogo, um acordo de Dia D, como
dizem nossos amigos norte-americanos. Eu insisti em que, antes de tudo, eles
resolvessem a questão de separa a Frente al-Nusra e os outros terroristas, das
forças saudáveis da oposição, para, só depois disso, afinal, declarar o
cessar-fogo.
Mas os norte-americanos insistiram que nós primeiros teríamos de declarar o
cessar-fogo, e depois eles cuidariam de separar terroristas e não terroristas.
Finalmente, decidimos conceder algumas coisas, aceitamos os termos deles, e dia
12 de setembro declaramos um dia de silêncio e a cessação de hostilidades... E
dia 16 de setembro aviões norte-americanos atacaram forças do exército sírio e
mataram 80 pessoas.
Ao mesmo tempo, imediatamente depois desse ataque aéreo, o ISISlançou uma
ofensiva nesse mesmo local. Nossos colegas norte-americanos nos disseram que
aquele ataque teria acontecido por erro deles. O erro custou a vida de 80
pessoas e, também por simples coincidência, os terroristas do ISIS iniciaram
a ofensiva imediatamente depois daquele ataque aéreo.
Mas, nos escalões inferiores, no nível de operação, um agente do serviço
militar dos EUA disse, com toda a franqueza, que passaram vários dias preparando
esse ataque. Como o ataque teria sido "um erro", se foi preparado
durante vários dias?
E foi assim que nosso acordo de cessar fogo acabou rompido. Quem quebrou o
acordo? Fomos os russos? Não.
Pergunta: A possibilidade de uma nova guerra fria está sendo discutida,
mas há pelo menos um norte-americano que gosta muito do senhor - Donald Trump.
O que o senhor pensa desse candidato? Gosta dele?
Vladimir Putin: Nós gostamos de todos. Os EUA são um grande país, os
norte-americanos são povo interessante, amável, talentoso. São grande nação e
grande povo.
Os russos trabalharemos com qualquer dos candidatos que os norte-americanos
elegerem. Claro, é mais fácil trabalhar com quem se interesse por trabalhar com
você. Se Mr. Trump diz que quer trabalhar com a Rússia, parece-nos
interessante. Mas o mais importante é a honestidade, dos dois lados.
Agora, por exemplo, todos falam do acesso humanitário em Aleppo. Todos falam
para nos convencer, como se não quiséssemos o acesso humanitário. Mas ninguém
precisa nos convencer, porque nós também entendemos que é necessário que um
comboio humanitário chegue até lá. A questão é como se deve fazer isso. Só há
uma estrada que os caminhões podem pegar, com militantes num dos lados da
estrada e o exército sírio do outro lado. Sabemos da provocação, do ataque a um
dos comboios, e temos certeza absoluta que esse ataque foi ação de um grupo
terrorista.
Já sugerimos que os militantes e o exército sírio, ambos, afastem-se da
estrada, e garantam passagem segura para os comboios humanitários.
Todos concordam, e a ideia até já foi posta no papel, e depois nada acontece;
nenhum dos nossos parceiros faz coisa alguma do que diz que faria. Ou não
querem ou não conseguem mais controlar os terroristas, não sei qual das duas
possibilidades é real.
Apareceu lá uma proposta exótica - e tenho certeza que surpreenderá você e o
público francês. Propuseram que nossas unidades armadas, pessoal militar russo,
fossem dispostas ao longo da estrada, para garantir trânsito seguro. Os
militares russos, gente de coragem, que não teme tomar decisões, disseram que
sim, que faríamos isso.
Mas eu disse a eles que só faríamos esse serviço se formássemos uma força
conjunta com os EUA. Dei ordem para que encaminhassem a proposta aos
norte-americanos. Foi nós propormos, e os americanos recusarem imediatamente.
Não querem soldados deles lá, mas tampouco querem tirar de lá os grupos
terroristas, que não são "oposição", são terroristas. O que fazer,
nessa situação?
Temos de aumentar a confiança mútua e admitir que essas são ameaças contra
todos, e que só unidos poderemos conter e erradicar aqueles terroristas.
Os russos temos excelentes laços com os serviços franceses de inteligência.
Franceses e russos realmente trabalham no mesmo comprimento de onda. É verdade para
nossos especialistas em contraterrorismo e seus contrapartes na França e em
vários outros países europeus. Mas nem sempre é assim.
Por exemplo, enviamos informação a nossos parceiros norte-americanos e, na
maior parte das vezes, nem respondem. Há algum tempo, enviamos informações
sobre os irmãos Tsarnaev. Enviamos o primeiro documento, não responderam;
enviamos um segundo documento, e responderam que não nos metêssemos; que os
Tsarnaev são agora cidadãos norte-americanos e eles mesmos cuidariam de tudo.
O resultado? Um ataque terrorista nos EUA. Será que ainda não está
perfeitamente claro que sempre se tem prejuízo, quando se rejeita cooperação
nessa área tão sensível?
Nesse momento, devíamos nos preocupar não com retórica política, mas com buscar
soluções para a situação, inclusive para a Síria. Que soluções existem? Só há
uma, uma única solução: convencer todas as partes envolvidas no conflito a
adotar a vida do acordo político.
Já tenho um acordo político com o presidente Assad, e ele aceita tomar a via de
adotar nova Constituição e realizar eleições nos termos que a nova Constituição
determinar. Mas não conseguimos convencer nenhum outro dos envolvidos, a
adotarem essa via.
Se o povo não votar no presidente Assad e ele não for eleito, terá havido
mudança democrática no poder na Síria. Mas sem qualquer participação de
intervenção armada vinda e comandada de fora da Síria; e sob estrita supervisão
da ONU. Não compreendo quem poderia considerar inaceitável essa
proposta. É solução democrática para a questão do poder naquele
país. Mas continuamos otimistas e esperançosos de que acabaremos por persuadir
nossos colegas e parceiros, de que essa é a única solução possível para o
problema.*****+
Respostas a perguntas de jornalistas do canal TF1 TV,
francês
11/10/2016, em Kovrov, Vladimir, Rússia (transcrito e trad. ru-ing.)
Gabinete do Presidente da Rússia
FONTE: http://port.pravda.ru/
Nenhum comentário:
Postar um comentário