Do massacre à canonização: Papa Francisco decreta santidade
de 30 mortos por holandeses no Brasil há 372 anos
BBC Brasil 13
horas atrás 15/10/2017
© BBC Quadro mostra massacre em Cunhaú, no Rio Grande
do Norte. Os mortos identificados serão declarados santos neste domingo |
Imagem pintada por Padre Eladio
Uma missa de domingo em uma capela, uma celebração em campo
aberto às margens de um rio e 150 pessoas brutalmente assassinadas.
Dois
massacres registrados no Rio Grande do Norte e apontados como símbolos da
intolerância religiosa de holandeses que dominavam o Nordeste brasileiro em
1645 renderão ao país, 372 anos depois, 30 novos santos - "os primeiros santos
mártires do Brasil".
Os chamados "mártires de Cunhaú e Uruaçú" - nomes
de duas localidades da época que hoje correspondem aos muncípios potiguares de
Canguaretama e São Gonçalo do Amarante - foram beatificados no ano 2000 pelo
Papa João Paulo II e serão canonizados neste domingo pelo Papa Francisco.
Os 30 novos santos são os únicos mortos identificados em
dois massacres que deixaram um saldo de aproximadamente 150 vítimas. Por esse
motivo, somente eles serão reconhecidos na cerimônia.
O caso é considerado emblemático, entre outros motivos,
porque os massacrados teriam "dado a vida, derramado o sangue, na vivência
de sua fé",
segundo a Igreja.
Em Cunhaú, 70 teriam sido assassinados em 16 de julho de
1645. O episódio é apontado como retaliação holandesa aos que seguiam a fé
católica e se recusavam a migrar para o movimento religioso protestante que
difundiam, o calvinismo.
O livro "Beato Mateus Moreira e seus companheiros
mártires", escrito pelo Monsenhor Francisco de Assis Pereira a partir de
pesquisas históricas e dados que embasaram a beatificação, afirma que os
holandeses contaram com a ajuda de indígenas para invadir uma capela da região,
fechar as portas e matar quem estivesse dentro, em uma manhã de domingo.
Quase três meses depois desse episódio, em 3 de outubro,
outras 80 pessoas também viraram alvos em outro cenário: às margens do rio
Uruaçú, foram despidas e assassinadas por não terem se convertido ao
protestantismo.
Nem crianças foram poupadas do ataque. Uma delas, com dois
meses de vida, foi uma das vítimas, junto com uma irmã e o pai.
Também parte desse segundo grupo, o camponês Mateus Moreira
acabou virando símbolo do martírio porque, no momento de sua morte, teria
bradado: "Louvado seja o Santíssimo Sacramento". A louvação seria uma
prova incontestável de sua fé, na visão católica.
Ele foi morto ao ter o
coração arrancado pelas costas.
A presença da igreja católica no Nordeste já era considerada
"marcante" nessa época, como descreve o Monsenhor Pereira, postulador
da causa da beatificação dos mártires, no livro. "Havia padres seculares
(padres pertencentes a dioceses), numerosos conventos de franciscanos,
carmelitas, jesuítas e beneditinos.
Eram mais de 40 mil católicos",
escreve ele.
Os holandeses aportaram na região em 1630. Eles chegaram
nesse período a Pernambuco e assumiram o comando político e militar da área -
estendendo o domínio posteriormente a outras capitanias, inclusive à do Rio
Grande, como era chamado o Rio Grande
do Norte.
Os colonizadores teriam perseguido e assassinado adeptos da
religião católica que não aceitaram virar calvinistas.
Na mesma época em que,
por meio da Inquisição, a Igreja Católica ainda perseguia, julgava e punia
acusados de heresia.
Adultos, jovens e crianças: quem são os mártires canonizados
A lista de novos santos inclui um total de 25 homens, entre
eles dois padres, e cinco mulheres. Eram 16 adultos, 12 jovens e duas crianças
- a mais nova, o bebê de dois meses de idade.
"A identificação dos que serão canonizados não se dá
tanto pelos nomes, mas também por identificação de parentesco e de amizade (das
vítimas)", ressalta o padre Julio Cesar Souza Cavalcanti, responsável por
encaminhar a canonização dos mártires na Arquidiocese de Natal.
A missa solene em que o papa Francisco vai proclamar a
canonização, na Basílica de São Pedro, em Roma, ocorre a partir das 10h deste
domingo, no horário local (5h no Brasil).
© Reuters O Papa Francisco dispensou a exigência de
milagres para canonização dos 30 novos santos brasileiros
"Do Brasil estamos esperando uma peregrinação em torno
de 500 pessoas. Porém, como temos outras canonizações, cremos que estaremos com
a praça lotada", diz o padre.
A professora aposentada Sônia Nogueira, de 60 anos, estará
em Natal, a mais de sete mil quilômetros de distância da cerimônia, mas em vigília
e "com o coração cheio de gratidão pelos mártires".
Ela diz que, por intermédio deles, pediu "a graça da
cura e da libertação" para o marido, José Robério, que em 2002 começou a
enfrentar as consequências de um câncer no cérebro.
Fortes dores de cabeça levaram o militar aposentado, hoje
com 68 anos, ao diagnóstico.
O caminho trilhado a partir desse ponto foi marcado por
"apreensão", mas também pelo que Sônia resume com letras maiúsculas
em um texto:
"MILAGRE DA SOBREVIDA!"
A frase foi escrita por ela em um relatório que enviou à
Igreja Católica no Rio Grande do Norte, em 2016, para contar a história do
marido em meio a exames, tratamentos de saúde, cirurgias e momentos de
"fé".
Rezar foi a estratégia fundamental, segundo Nogueira, para
que Robério resistisse à doença, que raramente possibilita sobrevida de mais de
três anos aos pacientes após diagnóstico.
No laudo médico que a professora
apresentou para embasar cientificamente o que considera um milagre, o
neurocirurgião que acompanhou o caso de Robério o coloca no rol de
"exceções da medicina", porque ele sobreviveu.
"Já se vão 15 anos e 5 meses desde que soubemos do
tumor", diz Sônia, em entrevista à BBC Brasil. Ela não tem dúvidas:
"Foi um milagre. A medicina foi só um complemento".
Comprovação de milagres não foi exigida no processo
Robério e sua mulher estão entre os mais de cinco mil fiéis
que já relataram à Arquidiocese de Natal "graças alcançadas" por meio
dos "novos santos" do Brasil.
Não foram necessários, porém, milagres para fundamentar a
canonização.
"O papa Francisco, quando decidiu pela canonização com
a dispensa do milagre, colocou como um ponto básico (para a aprovação) a
antiguidade do martírio e a perpetuidade da devoção do povo aos mártires",
explica o padre Julio.
Por meio do chamado processo de equipolência, o papa
reconhece a santidade considerando três requisitos: a prova da constância e da
antiguidade do culto aos candidatos a santos, o atestado histórico
incontestável de sua fé católica e virtudes e a amplitude de sua devoção.
O mesmo processo, em que milagres foram dispensados, foi
adotado para a canonização de São José de Anchieta, outro santo do Brasil.
© BBC Sônia e Robério Nogueira: Militar aposentado
descobriu tumor no cérebro em 2002 e atribui "milagre da sobrevida"
aos mártires | Foto: Arquivo pessoal
Para Nogueira e Robério, no Rio Grande do Norte, o milagre
que os mártires teriam realizado é, porém, inquestionável. "Robério foi
bem aventurado no processo, por intercessão deles", justifica a
aposentada.
"Como um paciente pode chegar a (sobreviver) 15 anos tomando
uma medicação que segura outros por no máximo três?".
Com dificuldades para falar e andar sem apoio, após a
segunda e última cirurgia que fez, o marido faz coro: "Estava muito doente
e os mártires me levantaram".
"Quem não vai ficar bom tendo um santo dentro de
casa?", ele questiona, referindo- se ao fato de os novos santos terem
origem no estado em que mora.
A canonização deste domingo eleva para 36 a quantidade de
santos considerados nacionais.
Até agora, só um deles, Santo Antônio de
Sant'Ana Galvão, mais conhecido como Frei Galvão - santificado em 11 de maio de
2007 - é, porém, brasileiro de nascimento. Os outros cinco já oficializados,
São Roque Gonzales, Santo Afonso Rodrigues, São João de Castilho, Santa Paulina
do Coração Agonizante de Jesus e São José de Anchieta, são estrangeiros, mas
desenvolveram
missões no país.
Eles são reconhecidos por milagres.
Para o padre Júlio, "a grande mensagem com a
canonização é de reconhecer que mesmo pensando diferente, seja em qualquer
campo, devemos sempre respeitar o outro e jamais destruir alguém, de nenhum
modo".
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