Absolvição
de Gleisi é um marco, mas ainda falta muito para o Brasil resgatar a
democracia. Por Joaquim de Carvalho
Publicado
por Joaquim
de Carvalho 20 de junho de 2018
A decisão da
Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal de absolver Gleisi Hoffmann foi um
marco histórico.
Será vista no futuro como um grito de independência frente a
uma aliança que uniu setores do Judiciário e a velha imprensa brasileira, cujo
resultado todos conhecem: a deposição de Dilma Rousseff e a prisão de Lula.
A cabeça de
Gleisi estava sendo cobrada pelos grupos extremistas MBL e Vem Pra Rua, com
muita repercussão em publicações lavajateiras, como o site Antagonista.
É o
movimento de sempre, mas que, aos poucos, perde força até no publico que antes
acreditava na farsa de que o PT foi o protagonista do maior esquema de
corrupção da Via Láctea.
A realidade
é um problema para quem vive da manipulação da opinião pública.
Cedo ou tarde,
ela brota, como a semente de um pé de feijão.
Continua atualíssima a frase
atribuída a Abraham Lincoln: ”pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se
enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo.”
Gleisi
estava sendo processada sem que a Procuradoria Geral da República apresentasse
provas contra ela — eram delações e um vídeo, em que um delator passeava com um
policial federal pelas ruas de Curitiba, para mostrar como, supostamente, teria
entregue dinheiro vivo a um empresário que teria atuado na arrecadação de
fundos para Gleisi.
No passado,
se dizia que papel aceita tudo, isto é, a declaração de uma testemunha,
registrada por um escrivão através de máquina de datilografia numa delegacia,
podia contar qualquer história.
Hoje, com um bom roteiro, um vídeo também pode
reproduzir qualquer farsa.
Basta criatividade e nenhum compromisso com o
interesse público.
Certas pessoas —a falta de caráter e vocação para participar
de linchamentos — continuam as mesmas.
A decisão de
ontem do STF de absolver Gleisi é um obstáculo a esse movimento, mas ainda
muito incompleto.
A Lava Jato é uma farsa que precisa ser desmontada por
inteiro, pelo bem da civilização, e esse processo tem dois desafios pela
frente. O primeiro é a liberdade de Lula.
A Segunda
Turma do Supremo Tribunal Federal tem entre seus cinco membros quatro que
votaram pelo concessão do habeas corpus a Lula depois da condenação confirmada
pelo TRF-4, e é natural que, ao julgarem um pedido de efeito suspensivo da
sentença, eles votem de acordo com o pleito da defesa do ex-presidente.
A pressão,
porém, para que, contrariando a própria consciência, mantenham Lula na prisão
já começou.
A colunista Monica Bérgamo reproduz hoje manifestação em off de um
dos ministros da corte.
Segundo ela, esse ministro acredita que nada mudará com
o julgamento da Segunda Turma do STF.
Para
proteger sua fonte — o que é natural e correto —, ela não diz que ministro
antecipou o voto, mas apostaria que é Celso de Mello, o decano da corte.
Ele
votou pelo habeas corpus a Lula, por ser doutrinariamente defensor do princípio
constitucional de que a prisão só pode ocorrer depois de esgotados todos os
recursos.
É considerado um constitucionalista do primeiro time.
Mas Mello
também tem um comportamento heterodoxo diante de casos de repercussão.
O jurista
Saulo Ramos, uma das pessoas mais inteligentes que eu entrevistei, padrinho da
indicação de Mello para o STF, registrou em sua biografia uma passagem que
resume bem a personalidade do afiliado:
“Terminado
seu mandato na Presidência da República, Sarney resolveu candidatar-se a
Senador.
O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — negou-lhe a
legenda no Maranhão.
Candidatou-se pelo Amapá. Houve impugnações fundadas em
questão de domicílio, e o caso acabou no Supremo Tribunal Federal.
Naquele
momento, não sei por que, a Suprema Corte estava em meio recesso, e o Ministro
Celso de Mello, meu ex-secretário na Consultoria Geral da República, me
telefonou:
— O processo
do Presidente será distribuído amanhã. Em Brasília, somente estão por aqui dois
ministros:
o Marco Aurélio de Mello e eu. Tenho receio de que caia com ele,
primo do Presidente Collor. Não sei como vai considerar a questão.
— O
Presidente tem muita fé em Deus.
Tudo vai sair bem, mesmo porque a tese
jurídica da defesa do Sarney está absolutamente correta.
Celso de
Mello concordou plenamente com a observação, acrescentando ser indiscutível a
matéria de fato, isto é, a transferência do domicílio eleitoral no prazo da
lei.
O advogado
de Sarney era o Dr. José Guilherme Vilela, ótimo profissional.
Fez excelente
trabalho e demonstrou a simplicidade da questão:
Sarney havia transferido seu
domicílio eleitoral no prazo da lei. Simples. O que há para discutir?
É público
e notório que ele é do Maranhão! Ora, também era público e notório que ele
morava em Brasília, onde exercera o cargo de Senador e, nos últimos cinco anos,
o de Presidente da República.
Desde a faculdade de Direito, a gente aprende que
não se pode confundir o domicílio civil com o domicílio eleitoral.
E a
Constituição de 88, ainda grande desconhecida (como até hoje), não estabelecia
nenhum prazo para mudança de domicílio.
O sistema de
sorteio do Supremo fez o processo cair com o Ministro Marco Aurélio, que, no
mesmo dia, concedeu medida liminar, mantendo a candidatura de Sarney pelo
Amapá.
Veio o dia
do julgamento do mérito pelo plenário.
Sarney ganhou, mas o último a votar foi
o Ministro Celso de Mello, que votou pela cassação da candidatura do Sarney.
Deus do céu!
O que deu no garoto? Estava preocupado com a distribuição do processo para a
apreciação da liminar, afirmando que a concederia em favor da tese de Sarney,
e, agora, no mérito, vota contra e fica vencido no plenário.
O que aconteceu?
Não teve sequer a gentileza, ou habilidade, de dar-se por impedido.
Votou
contra o Presidente que o nomeara, depois de ter demonstrado grande preocupação
com a hipótese de Marco Aurélio ser o relator.
Apressou-se
ele próprio a me telefonar, explicando:
— Doutor
Saulo, o senhor deve ter estranhado o meu voto no caso do Presidente.
— Claro! O
que deu em você?
— É que
a Folha de S.Paulo, na véspera da votação, noticiou a afirmação de que o
Presidente Sarney tinha os votos certos dos ministros que enumerou e citou meu
nome como um deles.
Quando chegou minha vez de votar, o Presidente já estava
vitorioso pelo número de votos a seu favor.
Não precisava mais do meu. Votei
contra para desmentir a Folha de S. Paulo. Mas fique tranqüilo.
Se meu
voto fosse decisivo, eu teria votado a favor do Presidente.
Não
acreditei no que estava ouvindo. Recusei-me a engolir e perguntei:
— Espere um
pouco. Deixe-me ver se compreendi bem. Você votou contra o Sarney porque a
Folha de S. Paulo noticiou que você votaria a favor?
— Sim.
— E se o
Sarney já não houvesse ganhado, quando chegou sua vez de votar, você, nesse
caso, votaria a favor dele?
—
Exatamente. O senhor entendeu?
— Entendi.
Entendi que você é um juiz de merda! Bati o telefone e nunca mais falei
com ele.”
Ontem, Celso
de Mello foi o único ministro a acompanhar o voto de Edson Fachin, que absolveu
Gleisi do crime de corrupção, mas a condenou pelo crime de uso de caixa 2 em
campanha — acusação que não constava da denúncia do Ministério Público Federal.
Os dois foram vencidos, para triunfo da justiça, mas esse voto heterodoxo de
Celso de Mello indica que ele continua pautando sua conduta não apenas pelo
consta dos autos, mas por fatores difíceis de compreender para quem olha o
Direito apenas pelo que dizem a Constituição e as leis.
Ele é brilhante, todos
reconhecem, mas, como observou Saulo Ramos, às vezes faz merda.
O outro
desafio que a democracia tem pela frente é a instalação da CPI das delações.
Os
mesmos atores que queriam a cabeça de Gleisi se movimentam para impedir que a
comissão seja instalada.
O que temem?
A CPI tem um
fato determinado: o depoimento de doleiros de que pagavam propina a um advogado
da panela de Curitiba para ter proteção nas delações, no Ministério Público
Federal e na Polícia Federal.
Por que não
instalar a CPI?
Só os
corruptos temem que a verdade possa brotar nessa CPI.
E, se não houver nada que
desabone a conduta dos lavajateiros, melhor para eles.
Inadmissível é blindar
autoridades, porque, como nos lembra aquele filme, A Lei é Para Todos.
Ou é
apenas para perseguir petistas?
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