9 de Junho
de 2019, 17h57
Atualizada 12/06/2019
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Parte 3
Uma
reportagem de 2010 trouxe alívio aos procuradores para levar adiante a acusação
– e o PowerPoint – contra o ex-presidente.
Faltavam
apenas quatro dias para que a denúncia que levaria o ex-presidente Luiz Inácio
Lula da Silva à prisão fosse apresentada, mas o coordenador da força-tarefa da
Lava Jato em Curitiba tinha dúvidas sobre a solidez da história que contaria ao
juiz Sergio Moro.
A apreensão de Deltan Dallagnol, que, junto com outros 13
procuradores, revirava a vida do ex-presidente havia quase um ano, não se devia
a uma questão banal. Ele estava inseguro justamente sobre o ponto central da
acusação que seria assinada por ele e seus colegas:
que Lula havia recebido de
presente um apartamento triplex na praia do Guarujá após favorecer a
empreiteira OAS em contratos com a Petrobras.
As conversas
fazem parte de um lote de arquivos secretos enviados ao Intercept por
uma fonte anônima há algumas semanas (bem antes da notícia da invasão do celular do ministro Moro, divulgada nesta
semana, na qual o ministro afirmou que não houve “captação de conteúdo”).
O
único papel do Intercept foi receber o material da fonte, que nos informou que
já havia obtido todas as informações e estava ansiosa para repassá-las a
jornalistas.
A declaração conjunta dos editores do The Intercept e do Intercept
Brasil (clique para ler o texto completo) explica os critérios
editoriais usados para publicar esses materiais, incluindo nosso método para
trabalhar com a fonte anônima.
No dia 9 de
setembro de 2016, precisamente às 21h36 daquela sexta-feira, Deltan Dallagnol
enviou uma mensagem a um grupo batizado de Incendiários ROJ, formado pelos
procuradores que trabalhavam no caso.
Ele digitou:
“Falarão que estamos acusando com base em notícia de jornal e indícios frágeis…
então é um item que é bom que esteja bem amarrado.
Fora esse item, até agora
tenho receio da ligação entre petrobras e o enriquecimento, e depois que me
falaram to com receio da história do apto… São pontos em que temos que ter as
respostas ajustadas e na ponta da língua”.
As matérias
de jornais a que o procurador se referiu são as dezenas citadas na peça de
acusação.
Dallagnol fazia sua última leitura da denúncia e debatia o texto com
o grupo, analisando ponto a ponto cada item que seria oferecido à 13ª vara de
Curitiba, onde Sergio Moro atuava como juiz.
Naquele dia,
ninguém respondeu à dúvida de Dallagnol: se o apartamento triplex poderia ser
apontado como propina para Lula nos casos de corrupção na Petrobras.
O
documento seria anunciado ao público, com direito a um hoje famoso PowerPoint, dali a poucos dias.
Sem essa
ligação, o caso não poderia ser tocado em Curitiba, onde apenas ações
relacionadas à empresa eram objeto de investigação. A ligação do apartamento
com a corrupção na petrolífera tinha gerado uma guerra jurídica nos primeiros
meses daquele 2016. De um lado, o Ministério Público do Estado de São Paulo. Do
outro, a força-tarefa de Curitiba.
Caso o caso
ficasse em São Paulo, não seria julgado por Sergio Moro, o atual ministro da
Justiça de Jair Bolsonaro e ex-juiz que ajudou coordenar a operação quando era
o encarregado pela 13ª Vara Federal de Curitiba, como mostram diálogos
revelados pelo Intercept.
O MPSP já
investigava o caso Bancoop muito antes de Curitiba. Em uma disputa
que envolveu até mesmo o Supremo Tribunal Federal, a Lava Jato tentava tirar o
caso das mãos dos paulistas para denunciar e julgar Lula em Curitiba. Para
isso, o imóvel de Lula precisaria obrigatoriamente ter relação com a corrupção
na Petrobras.
Não era o
entendimento dos promotores de São Paulo.
Em março de 2016, ao recorrerem de
uma decisão judicial que jogava o caso nas mãos de Dallagnol, eles disseram: “Em 2009/2010 não se falava de escândalo na
Petrobras. Em 2005 quando o casal presidencial, em tese, começou a pagar pela
cota-parte do imóvel, não havia qualquer indicação do escândalo do ‘petrolão’.
Ao contrário, estávamos no período temporal referente ao escândalo do
‘mensalão’.
Não é possível presumir genericamente e sem conhecer detidamente as
investigações que tramitam perante a 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba que
tudo tenha partido de corrupção na estatal envolvendo desvio de recursos
federais.”
Mas a Lava
Jato venceu e, pouco tempo depois, os procuradores conseguiram tirar o caso de
São Paulo alegando que o caso do triplex tinha, sim, envolvimento com a
Petrobras.
Agora, com a revelação das conversas secretas do grupo da Lava Jato,
descobre-se que os procuradores blefaram – eles não tinham certeza dessa
relação nem mesmo poucas horas antes de apresentarem a denúncia.
E, assim, o
caso parou no colo do aliado Sergio Moro.
‘TESÃO
DEMAIS ESSA MATÉRIA. VOU DAR UM BEIJO EM QUEM ACHOU’
Foto: Suamy
Beydoun / AGIF (via AP)
CERCA DE 24
HORAS DEPOIS, no sábado, 10, quando aparentemente chegou ao item 191 do
documento (que teria, em sua redação final, 274 itens), Dallagnol vibrou com o
que leu.
Ele escreveu, às 22h45: “tesao demais essa matéria do O GLOBO de 2010.
Vou dar um beijo em quem de Vcs achou isso.” A reportagem a qual ele se referia
– “Caso Bancoop: triplex do casal Lula está atrasado” – foi a
primeira a tratar do apartamento no Guarujá, muito antes da Lava Jato. Sem
mencionar OAS ou Petrobras, ela dizia apenas que a falência da cooperativa que
construía o prédio poderia prejudicar o casal Lula.
Seguiu-se
então uma série de mensagens de Dallagnol a respeito da reportagem:
Deltan
Dallagnol – 23:05:11 – Sabemos qual a fonte da matéria? Será que
não vale perguntar para a repórter, a Tatiana Farah, qual foi a vonte dela? [O
procurador certamente quis escrever “fonte”]
23:05:29 – Acho
que vale. Informalmente e, se ela topar, dá para ouvi-la.
23:05:58 – Pq
se ele já era dono em 2010 do triplex… a reportagem é um tesão, mas se
convertermos em testemunho pode ser melhor
23:06:08 – Podemos
fazer contato via SECOM, topam?
23:06:27 – vou
pedir pra ascom o contato
No mesmo
minuto, Dallagnol foi a outro chat no Telegram em que além dele estavam apenas
os dois assessores de imprensa da operação em Curitiba. “Consegguem pra mim o
contato da reporter que fez esta matéria?”, ele teclou. “pede celular, please…
precisamos meio que urgente”, insistiu, às 23h55, sem perceber que um dos
assessores já enviara o número da jornalista.
Mesmo antes
de ter o telefone, no entanto, Dallagnol já parecia aliviado quando retornou ao
grupo Incendiários ROJ, em que postou às 23h08: “Vcs não têm mais a mesma
preocupacção que tinham quanto ao imóvel, certo? Pergunto pq estou achando top
e não estou com aquela preocupação.
Acho que o slide do apto tem que ser
didático tb. Imagino o mesmo do lula, balões ao redor do balão central, ou
seja, evidências ao redor da hipótese de que ele era o dono”, já sugerindo a ideia
para o PowerPoint que apresentaria aos jornalistas dali a alguns dias.
Foto:
Reprodução/MPF
Quando
voltou ao grupo com os assessores e viu que o número de telefone havia sido
enviado, ele imediatamente encaminhou o contato aos procuradores Roberson
Pozzobon e Júlio Noronha, junto com um pedido e algumas orientações:
Deltan
Dallagnol – 23:56:11 – Vcs ligam pra ela?
23:57:24 – Na
ligação tem que ser totalmente respeitoso e deferencial em relação ao sigilo de
fonte
23:58:14 – Tem
que dizer que viram, queriam parabenizar pela matéria, e que, respeitado o dto
de fonte, caso não seja o casso de manter o sigilo, se ela poderia indicar quem
foi a fonte, ainda que ap´so eventual conferência ou conversa com as fontes…
Pelo diálogo no grupo Incendiários ROJ, não é possível saber se Pozzobon ou
Noronha fizeram o que lhes foi pedido. Mas a reportagem seria mencionada ainda
outra vez nas conversas privadas, agora a dois dias da entrevista em que a
denúncia contra Lula seria apresentada.
No dia
seguinte, véspera da denúncia, foi a vez do procurador Januário Paludo se
lembrar da matéria do Globo num outro chat, intitulado Filhos do Januário 1:
“Conversei
com a TATIANA FARAH DE MELLO, que fez a reportagem em 2010 sobre o TRIPLEX. Ela
realmente confirmou que foi para GUARUJA e lá colheu diversas informações sobre
os empreendimentos da BANCOOP.
A matéria era para ser sobre a BANCOOP e o
calote dado nos mutuários. Em guaruja conversando com funcionários da obra
– que ainda estava no esqueleto, é que ela descobriu que o triplex seria do
Lula. Ela manteve contato com a Assessoria de comunicação do Palácio do
Planalto que confirmou a informação.
Toda parte documental, como e-mail e
outros dados foram inutilizados quando ela saiu do ‘o Globo’. Acho que podemos
tomar por termo o depoimento. Marco uma video e pronto”, escreveu o procurador
às 17h40.
“Boooooa
demais Jan!”, respondeu imediatamente Pozzobon. Mas outro procurador, Carlos
Fernando dos Santos Lima, pediu prudência: “Creio que tomar depoimento de
jornalista não é conveniente.”
OS PROBLEMAS
DA PROVA QUE MORO CHAMOU DE ‘BASTANTE RELEVANTE’
Foto:
Fernando Frazão/Agência Brasil
A REPORTAGEM
DO GLOBO não foi um item trivial nesse caso: além de figurar na denúncia
como prova de que o triplex era de fato do casal Lula, foi usada na sentença
assinada por Sergio Moro. Sobre ela, o juiz escreveu: “A matéria em questão é bastante relevante do ponto de vista
probatório.”
Mas a
reportagem não bate com ao menos dois pontos do que é dito na denúncia do MPF.
O texto do Globo atribui o triplex a Lula e, para comprovar isso, usa a
declaração do então candidato à reeleição apresentada à Justiça Eleitoral em
2006.
Ela afirma o seguinte: “Participação Cooperativa Habitacional Apartamento
em construção no Guarujá – SP Maio 2005 – R$ 47.695,38 já pagos”.
Em tese, a
cota poderia ser usada para qualquer apartamento – a defesa de Lula alegaria
mais tarde que se tratava de uma unidade simples. O que é certo é que a
palavra triplex não aparece na lista de bens do político usada pelo
Globo.
A segunda
inconsistência poderia ter sido percebida pelos procuradores com uma leitura
atenta da própria reportagem. A matéria do Globo atribuiu a Lula a propriedade
de um triplex na torre B, o prédio dos fundos do condomínio.
Isso fica claro na
matéria: “A segunda torre (a torre A), se construída como informa a planta do
empreendimento, lançado no início dos anos 2000, pode acabar com parte da
alegria de Lula: o prédio ficará na frente do imóvel do presidente,
atrapalhando a vista para o mar do Guarujá, cidade do litoral paulista”.
Na denúncia
feita pela Lava Jato, no entanto, os procuradores afirmam que o triplex de Lula
fica na torre A, que ainda não existia quando a reportagem foi publicada.
Mas,
no item 191 da denúncia assinada pelos 14 procuradores, há o seguinte trecho
(citando a reportagem do Globo): “Essa matéria dava conta de que o então
Presidente LULA e MARISA LETÍCIA seriam contemplados com uma cobertura triplex,
com vista para o mar, no referido empreendimento”.
Segundo a
apuração do jornal, isso não é verdade. A reportagem diz claramente que o casal
Lula da Silva perderia a vista para o mar com a construção da torre A, que
seria erguida à frente da torre B, portanto, em frente ao triplex que o Globo
atribuiu a Lula.
A Lava Jato
usou a reportagem como prova de que o apartamento era, sim, uma propriedade ou
uma aspiração da família presidencial, mas indicou outro imóvel na denúncia.
Uma evidência de que a investigação foi imprecisa num dos pontos mais cruciais
da acusação: na definição do imóvel que materializaria a propina que Lula teria
recebido da empreiteira.
Ao longo de
semanas, nós tentamos contatos com fontes que poderiam ter acesso à troca de
e-mails entre a assessoria do petista e a repórter do jornal, mas não obtivemos
sucesso.
Enquanto o Globo alega que os e-mails foram “inutilizados”, a
assessoria diz não ter guardado cópia. Uma terceira dúvida, portanto, ainda
permanece: a reportagem diz que Lula era dono de um triplex no prédio, mas diz
que a assessoria da Presidência confirmou que o petista tinha um “imóvel” no
local.
O que é
verdade: a cota estava declarada em seu imposto de renda. Sem os e-mails, não
há como saber se o Globo inquiriu Lula sobre o triplex ou apenas
sobre um imóvel, ou se a assessoria do petista tomou uma coisa por
outra – e, sem querer, abasteceu a denúncia que viria contra Lula anos depois.
Ainda que a
localização do triplex na torre A ou B pareça irrelevante para a acusação por
lavagem de dinheiro, ela deveria ao menos colocar em dúvida o valor de prova da
reportagem, mencionada por Moro como um dos argumentos para a condenação de
Lula.
A Lava Jato
usou a reportagem como prova de que o apartamento era, sim, uma propriedade ou
uma aspiração da família presidencial, mas indicou outro imóvel na denúncia.
‘A DENÚNCIA
É BASEADA EM MUITA PROVA INDIRETA DE AUTORIA, MAS NÃO CABERIA DIZER ISSO’
Fotos:
Nelson Almeida/AFP/Getty Images
NA VÉSPERA
DA DENÚNCIA, Dallagnol voltou ao celular e comentou mais uma vez sobre a
peça de acusação, analisando a qualidade das provas que eles tinham em mãos. “A
opinião pública é decisiva e é um caso construído com prova indireta e palavra
de colaboradores contra um ícone que passou incolume pelo mensalão”, ele teclou
no grupo Filhos do Januário 1.
No dia
seguinte, quarta-feira, 14, a Lava Jato mostraria sua primeira denúncia contra
Lula, numa entrevista coletiva em uma sala de reuniões de um hotel de luxo em
Curitiba.
O triplex – segundo a Lava Jato, reformado pela OAS e doado ao
político como propina em contratos da empreiteira com a Petrobras – era a peça
central da denúncia por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
Dallagnol
voltaria ao assunto numa conversa privada com o então juiz Sergio Moro, em 16
de setembro, dois dias após a denúncia.
O procurador estava sendo duramente
criticado por parte da opinião pública, que alegava fragilidade na denúncia.
Tinha virado, também, alvo de chacotas e memes pelo PowerPoint que apresentou
na entrevista coletiva.
O
coordenador da Lava Jato escreveu a Moro: “A denúncia é baseada em muita prova
indireta de autoria, mas não caberia dizer isso na denúncia e na comunicação
evitamos esse ponto.” Depois, entrou em detalhes técnicos: “Não foi
compreendido que a longa exposição sobre o comando do esquema era necessária
para imputar a corrupção para o ex-presidente.
Muita gente não compreendeu
porque colocamos ele como líder para imperar 3,7MM de lavagem, quando
não foi por isso, e sim para inputar 87MM de corrupção.”
Em privado,
Dallagnol confirmava a Moro que a expressão usada para se referir a Lula
durante a apresentação à imprensa (“líder máximo” do esquema de corrupção) era
uma forma de vincular ao político os R$ 87 milhões pagos em propina pela OAS em
contratos para obras em duas refinarias da Petrobras – uma acusação sem
provas, ele mesmo admitiu, mas que era essencial para que o caso pudesse ser julgado
por Moro em Curitiba.
Preocupado
com a repercussão pública de seu trabalho – uma obsessão do procurador, como
demonstra a leitura de diversas de suas conversas –, ele prossegue: “Ainda,
como a prova é indireta, ‘juristas’ como Lenio Streck e Reinaldo Azevedo falam
de falta de provas.
Creio que isso vai passar só quando eventualmente a página
for virada para a próxima fase, com o eventual recebimento da denúncia, em que
talvez caiba, se entender pertinente no contexto da decisão, abordar esses
pontos”, escreveu a Sergio Moro.
Atualização
A
força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal emitiu três notas após a publicação da reportagem. Nelas, dedicou
especial atenção à “ação criminosa de um hacker que praticou os mais graves
ataques à atividade do Ministério Público, à vida privada e à segurança de seus
integrantes” e disse que “oferece acusações quando presentes provas
consistentes dos crimes.
Antes da apresentação de denúncias são comuns debates
e revisões sobre fatos e provas, de modo a evitar acusações frágeis em prejuízo
aos investigados”. “No caso Triplex, a prática dos crimes de corrupção e
lavagem de dinheiro foi examinada por nove juízes em três instâncias que
concordaram, de forma unânime, existir prova para a condenação.”
Também
em nota, o ministro Sergio Moro disse que “não se vislumbra
qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar
de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias”.
O
Intercept refuta a acusação de sensacionalismo e informa que trabalhou com
rigor para que todas as conversas fossem reproduzidas dentro do contexto
adequado.
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