Professores
analisam aula on-line de Olavo de Carvalho e mostram que ele não sabe nada de Kant
4 hours ago Denúncias
11/02/2019
“A formação
da personalidade”, “Introdução ao método filosófico” e “Sociologia da
Filosofia” são só alguns dos 14 cursos avulsos on-line oferecidos por Olavo de
Carvalho, considerado por muitos como o “guru” do governo Bolsonaro.
Na internet,
Olavo, que emplacou os nomes de Ricardo Vélez Rodríguez como ministro da
Educação e Ernesto Araújo, na pasta das Relações Exteriores, versa sobre todos
os campos da filosofia.
Faz isso não só nos chamados cursos livres que oferece,
mas também em séries de aulas mais aprofundadas de temas como “Simbolismo e
ordem cósmica”, “Guerra cultural” e “Esoterismo”.
São mais de
400 aulas e vídeos reunidos no “Curso On-Line de Filosofia”, que Olavo e seus
seguidores costumam chamar de COF.
O material pode ser acessado ao custo de R$
60 mensais — há descontos para planos trimestrais, semestrais e anuais.
Apesar
de se autointitular filósofo, ele não tem formação acadêmica.
A pedido do
GLOBO, três filósofos especialistas na obra de Immanuel Kant assistiram a uma
aula on-line de Olavo, em que ele trata da obra do pensador alemão, que viveu
no século XVIII e foi um dos principais nomes do Iluminismo.
Esse movimento, em
defesa da razão, da ciência e do estado laico, inspirou da Revolução Industrial
à criação do Estado com a separação de poderes.
Maurício
Keinert, professor de filosofia moderna na Universidade de São Paulo (USP);
Maria Borges, professora de filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC) e presidente da Sociedade Kant Brasileira; e Daniel Tourinho Peres,
professor especializado em filosofia alemã da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), analisaram as interpretações de Olavo sobre um dos principais textos de
Kant,
“O que é ilustração”, em que o alemão defende que todos os dogmas são
passíveis de questionamento, inclusive os religiosos.
Na leitura
de Olavo, Kant se opõe às religiões cristãs.
Na visão dos três filósofos, o
guru do bolsonarismo está equivocado.
— Olavo diz
estar construindo uma comunidade de amigos em que todos pensam e querem a mesma
coisa.
Não é à toa que Kant seja um pensador que precisa ser deturpado.
Para
Kant, desacordo é bom, é assim que a gente cresce — diz Tourinho Peres.
Leia a
seguir trechos da aula de Olavo e a avaliação dos professores.
Acordo
criminoso
Segundo
Olavo de Carvalho, Kant define a função do clero como criminosa e diz que
“ninguém escreveu coisa pior sobre a Igreja Católica”.
O brasileiro diz que o o
alemão coloca Jesus Cristo como um criminoso .
“Isso tem que acabar, é
inválido, ninguém disse isso antes.
É curioso que mesmo os críticos do Kant
dizem que ele era um homem cristão.
De onde vem esse estado de anestesia com
que as pessoas leem o Kant?”, questionou Olavo.
Para Maria
Borges, a interpretação de Olavo é um erro. “Kant tem um texto que se chama ‘A
religião nos limites da simples razão’.
O próprio alemão foi criticado pelos
iluministas porque admitia um espaço para a religião, desde que limitada pela
razão”, diz ela.
Keinert concorda e diz que Kant defende a liberdade religiosa
como mais importante do que ir contra uma religião:
“Isso é o que parece
incomodar o Olavo — a ideia de que as pessoas tenham a possibilidade de ter
diferentes religiões, várias visões”.
Matança de
cristãos
Olavo
denuncia que a “missão número 1 do Iluminismo” é eliminar a religião cristã e
que Kant tem uma responsabilidade,
“ao menos indireta, pelas matanças de
cristãos que se tornaram endêmicas” em diferentes países como França, Espanha,
Itália e México.
“Se você diz isso, que Kant começou tudo isso, as pessoas
ficam chocadíssimas”, afirmou.
Keinert aponta que não se deve tratar um texto
do século XVIII com anacronismo:
“O texto de Kant nasce a partir de um debate
sobre o casamento civil.
Poderíamos interpretá-lo para analisar a questão hoje
do casamento homoafetivo.
Nesse sentido, seu pensamento é visto como algo
perigoso pelos conservadores”, analisa.
Toninho Peres classifica o projeto de
Olavo como “obscurantista e dogmático”.
O filósofo compara as duas propostas e
diz que, enquanto Olavo prega um pensamento comum e único a todos, Kant acredita
que o desacordo é bom e “é assim que a gente cresce”.
Religião só
na esfera privada
Segundo
Olavo, Kant pregava que religiosos só poderiam “representar a Igreja em
privado”.
Em público, ele não seria obrigado e poderia expor “apenas suas
opiniões pessoais”.
Olavo compara essa questão com a “a noção iraniana de que
se pode praticar a religião em casa, mas não se pode falar dela em público”.
E
diz que isso está sendo imposto no Ocidente por causa da obra do alemão.
Para
Keinert, Kant se posicionava contra o dogma, mas “não necessariamente contra a
religião católica”.
Segundo Toninho Peres, afirmar que o projeto filosófico de
Kant seria destruir a religião cristã e criar uma nova “é um disparate” e que
fazer a comparação com o Irã é “mais disparate ainda”.
Para Maria Borges, os
textos de Kant apontam para uma outra questão:
a relação da religião com outras
áreas.
“O que Kant não quer é uma religião que determine as questões de estado,
da ciência”, afirma a professora.
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